A coroa do rei rolou,
assim se fez o milagre do pão.
Eram pedras preciosas
o que agora são roupas, ferramentas, casas, pontes.
Coisas supérfluas, o essencial:
são brinquedos, livros, a imaginação.
E a terra – este chão onde sonho
– decidiu não mais ter dono,
como uma jovem quando acorda
o sopro

Antes do final já esperado,
Oh vida breve, é um sopro,
é um vento carregado
pronto pra apagar o fogo,
o menino então entende
que o tempo vale muito,
e o tempo de quem sente
é melhor tempo do mundo.
Recorda um sonho: um velho
triste que então dissera:
“a flor do seu evangelho
vai murchar na primavera.
Mas, se a semente corre
é pra retornar de novo,
nesta terra nada morre,
se semeada pelo povo…”
Lembra da bola, de João,
do Egito, da Palestina;
do pai, calejada a mão,
dos crucificados na colina.
Pensa em sua mãe Maria
e a saudade bate forte;
no cheiro da carpintaria,
pensa na vida e na morte.
Pensa seu rosto profano
que o espelho lhe mostrou:
“Se o diabo é humano,
um deus eu também sou”.
E, por fim, vê o silêncio
no vazio que se aproxima,
o alcança, um pio suspenso
nessa jornada que termina.
Trecho de O evangelho do aprendiz de carpinteiro – Pedro Paulo Pieroni, São Paulo, 2025.

Ontem a noite cresceu no meu olho:
Três crianças de mãos dadas corriam na colina.
Louvavam a seu Deus por toda parte, assobiando seu salmo dos adultos,
mas somente elas percebiam, sob a luz da lua,
o seu Deus na sombra da mão delas.
10 de agosto, Giovanni Pascoli

São Lourenço é; eu sei, porque um tanto
de estrelas na noite tranquila
brilha e cai e porque um grande pranto
no côncavo do céu cintila.
Voltava a andorinha ao seu teto:
Mataram-na: cai entre espinhos:
levava no bico um inseto:
a ceia dos seus filhotinhos.
Lá está como em cruz, a mostrar
um verme a um céu silencioso;
e no ninho sombrio, um piar,
sempre e sempre menos queixoso.
Volta ao ninho um homem, também;
mataram-no: Perdoo; falou:
o olho aberto, um grito retém,
e nas mãos um presente apertou…
Duas bonecas pra casa trazia,
a casa que espera em vão:
ele atônito, imóvel, confia
as bonecas ao céu, à amplidão.
E você, Céu, no mundo infinito,
lá no alto, eterno, imortal,
chove um pranto de estrelas, aflito,
neste átomo opaco do Mal!
(Myricae – Elegie)
tradução Jorge Teles
Senecio, Paul Klee (1922)

Criada em 1922 pelo pintor suíço-alemão Paul Klee, Senecio é uma festa de formas geométricas, de linhas e cores.
O nome da obra vem do latim, cuja tradução é “velho”, mas, de acordo com um boato plástico, tem relação com a planta de mesmo nome. Isso depois de o pintor ver a planta, porque antes a obra era chamada de “Head of a Man”.
O amarelo, o rosa, o vermelho, o laranja, o roxo, juntos, misturados aos círculos, quadrados, retângulos, triângulos, dão sensação de uma infância ao sol, tem cheiro de escola (no ótimo sentido), o traço de algo que se está por descobrir. Talvez Klee tenha sid0 tão simples quanto profundo.
Como uma criança que brinca.
Todos os animais – Gianni Rodari

Eu quero ser capaz,
ter a voz que encaixa,
falar com os animais
O que que cê acha?
Ouvir de um cavalo
uma história envolvente
sobre os papagaios,
crocodilos e serpentes
Uma simples galinha
quando um ovo pôr
ao cantar uma cantiga
eu traduzo “muito amor”
Do elefante muita sombra
parecido a um planeta
Mas que idioma sai da tromba
quando ele trombeta?
Até ao gato que é discreto
eu pergunte se está mal
Talvez ele fique quieto
Ou – no máximo – “miau”
que talvez seja um “tchau”.
Transversão de Pedro Paulo Pieroni
a balança

No quintal, o vento bateu tão forte, mas tão forte, que tremeu as cordas da balança. Sem parar quieta, ela agora vai pra lá e vem pra cá, balançando toda a toda.
A corda que dá sustentação à balança é preta e branca, entrelaçada. Presa numa ponta cadeirinha, feita de tábua comum, é verdade, mas caprichada nos trinques, o acabamento com verniz. E, com o vento, a balança vem pra cá e vai pra lá, balançando toda a toda.
Ela movimenta-se tão macia e agradável, que parece ter sido empurrada pelas mãos de uma criança. E a outra criança, balançando, deu um salto e correu. Mas só se parece, é só o vento. E com isso, a balança vai pra lá e vem pra cá, solitária, balançando toda a toda.
Ora lá, espere um pouco, nem tão solitária assim. Há um homem sentado no quintal, observa ao vao e vem da balança, ela balançando toda a toda, de modo que ameaça um sorriso, mas fecha o rosto, olha pro alto, com as pernas dobradas, juntas, abraça os joelhos e solta o suspiro.
Assim ele lembra, assim ele chora. E ainda que houvesse um balão de quadrinhos pronto a revelar seu pensamento, ele chora.
Ignorando tudo isso, a balança vai pra lá e vem pra cá, balançando toda a toda.
O menino azul

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)
Cecília Meireles